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Christos Yannaras

A FÉ VIVA DA IGREJA

Introdução à Teologia Ortodoxa

Tradução brasileira da versão francesa:
LUÍS ARTIGAS
Curitiba 1997

EDITION DU CERF
29, bd Latour-Maubourg 75007
Paris 1989

Capítulo 10: A Ortodoxia

10.1 Apofatismo e formalismo

a língua de hoje, a palavra ortodoxia tem o significado de adesão a um dogma, a uma ideologia tomada ao pé da letra. Equivale, mais ou menos, ao conservadorismo, ao apego firme a formas transmitidas. É ortodoxo aquele que permanece fiel à formulação verdadeira e autêntica de um ensino, em oposição aos que alteram o seu significado inicial e que se afastam dele.

Assim, toda ideologia dogmática - religiosa, social ou política - esconde sua própria ortodoxia. Por exemplo, fala-se de ortodoxia luterana, freudiana ou marxista, para designar o apego (conservador, e em geral estéril) às formulações de Lutero, Freud ou Marx, um apego contraposto às interpretações ulteriores e às transformações criativas das ideias originais.

Invoca-se ordinariamente a ortodoxia gabando-se de ser fiel ao verdadeiro e autêntico. Isto traduz a exigência de um reconhecimento comum e de um respeito dos valores transmitidos, mas também em relação aos homens que os preservam e representam. Assim a ortodoxia chega a funcionar como um meio de justificação útil, não tanto para as ideias conservadoras, quanto para pessoas conservadoras, servindo para mascarar psicologicamente uma falta de audácia ou uma esterilidade espiritual. Aqueles que não ousam ou não podem criar algo novo na sua vida se agarram fanaticamente a uma certa ortodoxia. Tiram dela um peso, uma autoridade e, finalmente, um poder, se tornando representantes intendentes da autenticidade, defensores das formas, intérpretes da letra. Acabam transformando a dita ortodoxia num “leito de Procusta” sobre o qual amputam a vida para adaptá-la às exigências do dogma.

Esta interpretação da ortodoxia e os sinais que a acompanham são consequência de uma certa concepção da verdade e das possibilidades de aceder a ela. Ela pressupõe a capacidade para o homem de deter individualmente a verdade e, portanto, de transformá-la num objeto que ele poderá dominar.

Para poder ser transformada num objeto possuído, a verdade tem que ter um caráter dado e definitivo, se identificar à sua formulação, à “letra” mesma da sua formulação; a verdade deve encontrar seus limites inamovíveis dentro da sua formulação. A identificação com uma formulação definitiva objetiviza a verdade. Faz dela um objeto que a inteligência pode possuir e dominar. Assim, a forma perfeita de posse da verdade é o apego à ortodoxia, à objetivação inicial e autêntica.

Semelhante concepção da verdade e das possibilidades de aceder caracteriza e também funda a nossa civilização atual, a civilização chamada “euro-ocidental”, de dimensões universais. Todavia, ela não tem relação nenhuma com a Igreja e a ortodoxia eclesial.

O apofatismo da verdade eclesial, de que falamos nas páginas anteriores, exclui toda concepção objetivada da ortodoxia. A verdade não se esgota na sua formulação, que nada mais é do que uma fronteira-limite da verdade, um “envelope” ou uma “salvaguarda” daquela. A realidade que nunca é desmentida nela mesma, é verdade. A vida que não é abolida pela morte é verdade, e de maneira última. Por isso, o conhecimento da verdade não se obtém pela compreensão das formulações, mas pela participação no evento da verdade, na verdade da vida, na imediaticidade da experiência.

10.2 Heresia e catolicidade

Na história da Igreja, o termo ortodoxia aparece para diferenciar a verdade da heresia. Mas tanto uma quanto outra, heresia e ortodoxia, se referem a acontecimentos, e não a princípios teóricos. A heresia é o acontecimento em que se separa do corpo eclesial um grupo constituído sem relação à assembleia eucarística local. Ela representa a recusa efetiva da maneira de existência eclesial, que é a unidade e a comunhão no amor. Contrariamente, a ortodoxia é a verdade da Igreja católica, tal como é realizada e manifestada em cada reunião eucarística local. Cada Igreja local é a Igreja católica (acontecimento e experiência de catolicidade) quando recapitula e encarna a verdade íntegra (católica) da Igreja, o “todo” da verdade, isto é, a vida na sua plenitude “em Cristo”, todos os dons de vida dispensados pelo Espírito Santo.

Os testemunhos dos textos dos primeiros séculos afirmam de maneira bem explícita que a Igreja católica é o critério da ortodoxia, e não a ortodoxia o critério da Igreja católica [1]. Com efeito, a ortodoxia pressupõe a participação na Igreja católica, não o apego à justeza de formulações teóricas. O acontecimento e a experiência da catolicidade precedem as formulações teóricas. Estas foram ocasionadas pelas heresias que constrangiam a Igreja a expressar em formulações definitivas a sua experiência da verdade. A justeza da verdade e da fé prima tanto cronologicamente quanto essencialmente. Ela é garantida pela participação na experiência da Igreja católica e encontra na formulação intelectual apenas seu revestimento e seus limites protetores.

10.3 O critério da ortodoxia

Em todo caso, a heresia não se manifesta somente como acontecimento (pelo ato do cisma), mas também como ensino teórico. Os heréticos ensinam uma “verdade” que não corresponde à experiência e à fé da Igreja católica. Esta não-correspondência com a experiência e a fé da Igreja católica é o critério que diferencia a heresia da Ortodoxia. Este critério, que se tenta objetivar nas definições dos concílios e nos escritos dos Padres da Igreja, não deixa, porém, de pressupor permanentemente a indeterminação dinâmica da vida, a imediaticidade da experiência.

As formulações definitivas da verdade e a indeterminação dinâmica da experiência da verdade são dois elementos, afinal, inconciliáveis no nível do pensamento lógico. Portanto, eles podem se harmonizar no plano da vida e do seu vector hipostático: a pessoa. Por isso, o critério da ortodoxia eclesial é a experiência e a fé da Igreja católica, encarnada na pessoa dos santos. Os santos da Igreja não se destacam precisamente pelas suas qualidades morais, mas pela manifestação e a figuração da verdade nas suas pessoas. O critério da verdade é a catolicidade eclesial, e a medida da catolicidade é o cumprimento dos dons da vida na pessoa dos santos.

A aplicação destes critérios tentando dissociar a ortodoxia da heresia é um escândalo insuportável para o pensamento racionalista. Deixa sem explicação muitos aspectos da história eclesial, ou pelo menos complica a que nós consideramos como explicação lógica de tais aspectos. Amiúde, por exemplo, os heréticos são maioria e, todavia, é a Igreja minoritária que, finalmente, é reconhecida como católica. Falamos do reconhecimento da ortodoxia pelo corpo eclesial do povo, embora o critério deste reconhecimento não seja nem objetivo nem definido, ou não seja a opinião da maioria. Acontece de a heresia se impor não somente pelo número como também pela duração, apresentando-se durante um longo período como a verdade e a fé autênticas da Igreja. Todavia, a ortodoxia acaba voltando vencedora, mesmo se sobreviveu numa única pessoa. Imperadores combateram a ortodoxia e desencadearam perseguições contra os ortodoxos; alguns concílios, e não poucos, reunindo os bispos, dogmatizaram de maneira anti-ortodoxa e herética; o contrário também aconteceu: chefes seculares e até clérigos tendo autoridade, impuseram pela violência a ortodoxia dogmática, a ortodoxia da “letra”, enquanto eles mesmos estavam tragicamente desprovidos da atitude da verdade ortodoxa. Ora, através de todas estas obras de sabotagem “por dentro” ou “por fora”, a ortodoxia é finalmente salva - ou, pelo menos, foi salva durante séculos, sendo a consciência da- fé viva do povo na experiência e no testemunho dos Apóstolos e dos santos.

Como, então, foi possível salvaguardar esse critério indefinível que diferencia a ortodoxia da heresia, como são interpretados todos os sintomas evocados anteriormente e muitos outros com eles conectados, não havendo uma medida que imponha a verdade de maneira objetiva e autêntica? A resposta se encontra na persistência da Igreja em identificar a verdade com a vida, e a vida com seu único vector hipostático: a pessoa; a Igreja recusa substituir a imediaticidade da experiência e da relação por esquemas intelectuais, códigos éticos, estruturas   de poder ao serviço de uma autoridade. Assim, a ortodoxia se ganha ou se perde da mesma maneira que se ganha ou se perde todo dom de vida: um amor verdadeiro, uma obra de arte, um ponto de partida dinâmico no conhecimento.

Esta salvaguarda ou esta perda fica inacessível para os critérios “objetivos” da ciência e da historiografia; aliás, da mesma maneira que o funcionamento vivo da linguagem permanece inacessível a estes mesmos critérios, por causa das suas transformações históricas, bem como as manifestações criativas da arte e sua “semântica” social.

10.4 A contribuição helênica

Em todo caso, não devemos esquecer que a Igreja se desenvolveu historicamente num mundo e numa civilização helênica ou helenizados, que tinham uma concepção da verdade muito diferente daquela apresentada pelas exigências de “objetividade”. De Heráclito aos neoplatônicos, o conhecimento se manifesta como um-acontecimento ·de comunhão: “Onde todos estamos de acordo, estamos no verdadeiro; onde nossos julgamentos individuais divergem, nós erramos” [2]. O conhecimento somente é verdadeiro quando é confirmado pela experiência comum, quando, pela sua “comunicação” nós comungamos com os outros, compreendemos e somos compreendidos, nos harmonizamos graças à certeza experiencial comum.

Portanto, não é a compreensão individual que constitui uma aproximação à verdade, mas somente a sua confirmação social, o acontecimento de participação na razão comum (koinos logos). Sem esta gnosiologia que visa a dinâmica da sociedade, nós não podemos nos aproximar da filosofia grega, nem da sua arte, nem da performance social que constituía a cidade, o ideal da democracia dos gregos.

A ortodoxia eclesial viu se formar e desenvolver seu caráter apofático num mundo e numa civilização que, em quase todos os seus aspectos, se harmonizava com os critérios do conhecimento apofático. Aliás, as maiores heresias dos oito primeiros séculos - grande número dos seus adeptos e pela sua duração - nunca abalaram esse pressuposto fundamental das manifestações históricas da ortodoxia: o apofatismo da teologia eclesial. Isto explica por que estas heresias não sobreviveram historicamente (os minúsculos grupos de monofisitas que perduram até hoje representam apenas um apego fanático a uma terminologia e uma linguagem incompletas). Elas não atingiram nem falsificaram a maneira da vida, o significado social e dinâmico da verdade que fundamentava e organizava a vida do mundo helênico ou helenizado.

10.5 O desvio ocidental

A primeira transformação de ordem “herética” que não apenas sobrevive historicamente, mas também muda radicalmente o percurso da História humana, é aquela que nega o pressuposto fundamental da ortodoxia, isto é, o apofatismo da verdade. Ela se afirma progressivamente no espaço da Europa ocidental, funda suas inovações e crenças sobre uma nova concepção do conhecimento e da sua verificação, leva ao único cisma que parece historicamente irreparável e modela, finalmente, uma maneira diferente de viver, ou seja, uma civilização a priori irreconciliável com a dinâmica da verdade eclesial ortodoxa.

A recusa do apofatismo do conhecimento tem, sem dúvida, sua origem e desenvolvimento, no espírito jurídico da tradição romana. Roma é o berço da ciência do Direito, do seu desenvolvimento e seu cultivo sistemáticos. Ora, o costume de pensar de maneira jurídica, habitua inevitavelmente a objetivar os casos e substituir a indeterminação dinâmica da vida por esquemas e modelos definitivos de vida. A unicidade do acontecimento é concebida através da sua referência à objetividade do caso geral, e a verificação da experiência é garantida pelo recurso à sua definição esquemática.

Agostinho de Hipona encarna, certamente, a primeira grande etapa da fundação teórica da recusa do apofatismo. Ele não tinha uma educação helênica, desconhecia inclusive a língua grega. Estudou sobretudo o pensamento jurídico de Cícero, Tertuliano e Ambrósio de Milão. Depois, transferiu a atitude requerida pelas exigências jurídicas do direito, ao campo das exigências de um conhecimento certo. Assim como as leis do direito encerram a garantia objetiva e eficaz da harmonia social, a delimitação da verdade, permanente, inevitavelmente esquemática, mas comumente admitida, garante a objetividade eficaz do conhecimento, constitui uma espécie de “direito da verdade”.

Assim, pela primeira vez na história, a verdade foi identificada com a sua formulação, e o conhecimento ou posse da verdade, com a compreensão individual desta formulação. A verdade aparece dissociada da dinâmica da vida, ela é identificada com a compreensão, o raciocínio correto. Nas obras de Agostinho aparecem já as consequências fundamentais dessa mudança radical na concepção da verdade, consequências que constituirão a base ulterior da vida social e cultural do Ocidente. O raciocínio correto substitui a indeterminação dinâmica da vida, a vida entra no molde da “lógica” (ratio), a lógica é elevada ao nível de autoridade última, quer na forma de regras morais, quer como mandamentos de uma prática social ou política. O moralismo e o totalitarismo político, esses dois produtos típicos da civilização euro-ocidental, têm manifestamente suas raízes no pensamento de Agostinho.

Um grande número de obras teológicas agostinianas teria podido construir um conjunto de concepções “heréticas” isoladas, se as inovações de Agostinho não tivessem sido eclipsadas pelo seu exemplo admirável de conversão e de transformação moral, e se, no século IX, os Carolíngios não tivessem “redescoberto” a importância dos seus ensinamentos heréticos. A ambição de Carlos Magno, pretendendo fundar um segundo Império romano no Ocidente, completamente autônomo do Império helenizado do Oriente, levou antes de mais e em primeiro lugar, a buscar um fundamento cultural diferente, pois nesta época a base cultural era um dado determinante da unidade política. Pois bem: o testemunho dos historiadores é unânime, para afírnar que a obra de Agostinho foi utilizada para estabelecer esta base cultural, exclusivamente latina, privada de influências helênicas.

É da obra de Agostinho que os cristãos do Ocidente tiraram os elementos de diferenciação religiosa que levaram ao grande Cisma entre Oriente e Ocidente no ano de 1054. O que contribui a esta diferenciação não é simplesmente o aspecto formal dos desvios heréticos nem somente a atitude jurídica e racionalista correspondente. No coração de tudo isto há um aspecto muito mais determinante no ensino agostiniano: a supremacia do elemento religioso em detrimento do elemento eclesial A participação na verdade da Igreja pressupõe, coem efeito, a renúncia à individualidade, ao eu, a transformação da vida em comunhão de amor, segundo o modelo trinitário da vida verdadeira. A religiosidade, pelo contrário, ela é sempre individual: ela “melhora”, consola, satisfaz e protege o indivíduo. Agostinho considera e proclama que a Igreja é uma religião, que convence racionalmente a inteligência individual, ajuda ao domínio de si e à moral individual, oferece ao indivíduo a proteção e a garantia proveniente de uma autoridade superior.

O Cisma de 1054 abre o caminho para a alteração talvez mais radical do cristianismo em toda a sua história: a sua transformação numa religião. Isto explica o fato de que o aperfeiçoamento das diferenças introduzidas pelos cristãos do Ocidente vai destacar não somente um novo império ou uma nova heresia passageira, mas outra civilização até então desconhecida na história.

A escolástica é a fase seguinte destas diferenciações: uma fase de valorização do agostinianismo, de um dinamismo impressionante. Em dois séculos apenas, o XII e o XIII, os escolásticos completam a virada radical dos critérios e pressupostos da teologia eclesial, a fim de negar a origem e a marca helênica de tais pressupostos. Negam o apofatismo da formulação teológica, o primado da vida e seu vector hipostático: a pessoa, tomada na sua alteridade e liberdade existenciais. Voltam à ontologia helênica antiga (o primado da concepção intelectual da essência, a predeterminação essencial e lógica da existência, a sua “predestinação absoluta”). Mas, ao mesmo tempo que voltam à ontologia helênica antiga que os Padres gregos rejeitaram [3], os escolásticos rejeitam a gnosiologia helênica antiga, que os Padres gregos adotaram. Ficam com a concepção agostiniana do conhecimento, onde se afirma que o conhecimento se esgota nas capacidades da inteligência individual. Definem a verdade como “coincidência entre o conceito e o seu objeto”: o conhecimento é verdadeiro simplesmente graças a esta coincidência, a verdade torna-se uma realização intelectual.

As escolhas e recusas feitas pelos escolásticos, bem como suas inovações e esquematizações teóricas, servem à mudança consumada no nível da experiência e do vivido: a passagem do plano eclesial ao plano religioso. A arte da época reflete de maneira mais clara do que as formulações teóricas a mudança acontecida, a transformação da Igreja do Ocidente numa religião. Quando o estilo gótico aparece no início do século XII, na arquitetura sagrada, ela expressa (de maneira genial, sem dúvida) uma mudança já acontecida no âmbito do culto. Depois, quando, a partir do século XIII, a iconografia eclesial é definitivamente abandonada em favor da pintura religiosa (provocando a incorporação dos sentimentos individuais e a produção das emoções individuais), este acontecimento reflete uma mudança acontecida na maneira de apreender a vida e o mundo.

10.6 A mudança histórica

O racionalismo escolástico, nos séculos do seu apogeu, não é apenas uma corrente e um sistema filosófico ou teológico. É uma ideologia dogmática “fechada”, tendo como vector institucional a Igreja católica romana: ela interpreta de maneira decisiva e definitiva o conjunto da realidade física e histórica, e realiza esta interpretação com ajuda dos “axiomas”, dos “princípios” e das “leis” de uma positividade racionalista. A objetividade racional fornece autoridade ao vector institucional da ideologia, e a autoridade do vector institucional justifica o procedimento racional.

Esta dupla correlação encontrou sua expressão política na visão teocrática de uma soberania universal reconhecida ao papa, na concentração de todo o poder espiritual, legislativo, judiciário e político (plenitudo potestatis) nas mãos do pontífice romano. Tomás de Aquino atribuía a este poder um caráter evidentemente metafísico: ele introduziu na sua Summa Theologiae (1266-1272) o princípio da infalibilidade papal, consagrando assim a função do mandamento infalível, o privilégio absoluto de “gerir” a verdade, que não suporta contradição nenhuma. Alguns anos antes, em 1233, o papa Gregório IX fundou a instituição da Inquisição (Inquisitio), aplicando nos fatos o privilégio da infalibilidade. Depois, em 1252, Inocêncio IV, numa bula papal, consagrou a tortura como método útil para a instrução dos processos dos heréticos, oferecendo um modelo a todos os totalitarismos posteriores no concernente à neutralização dos opositores intelectuais.

A própria Reforma, que tão caro custou três séculos depois, ao mesmo tempo que, por um lado, contestou radicalmente quase todos os aspectos das alterações históricas que afetaram a mensagem cristã da salvação, não conseguiu se aproximar do núcleo ou causa original destas alterações. Ela não questionou nem a ontologia nem a gnosiologia do catolicismo romano, permanecendo cegamente submetida a Agostinho e substituindo a autoridade institucional pela “infalibilidade” dos textos.

De Agostinho a Tomás de Aquino, e até Calvino, no Ocidente foi completada a nova concepção da ortodoxia eclesial. A ortodoxia significa, desde esse momento, a conformidade com a ideologia dominante institucionalizada; ela é dominante por ser obrigatória nos planos lógicos, social e metafísico. Significa também a fidelidade à letra da formulação ideológica, pois ela é quem garante a posse individual da verdade. Ela significa, finalmente, a submissão às estruturas de poder que expressam e garantem a autoridade da ortodoxia. 

Todavia, poderíamos considerar como característico o fato de que o Ocidente não reivindicou para si o qualificativo de ortodoxia. Preferiu o de catolicidade, dando a este termo um conteúdo exclusivamente quantitativo-geográfico e centralizador-organizativo. A palavra ortodoxia foi conservada para qualificar as Igrejas do Oriente, que permnaneceram fiéis à Tradição, à teologia e à prática da vida eclesial transmitidas pelos Apóstolos e pelos Padres.
Mas a fidelidade do mundo helênico ou helenizado do Oriente cristão à ortodoxia eclesial das origens muito logo deixou de ser encarnada numa forma histórica concreta, politicamente e culturalmente autônoma. No início do século XIII, as horas dos cruzados ocidentais esmagam o Oriente helênico ortodoxo, submetendo-o à hierarquia latina (1204). As forças do helenismo oferecem uma última resistência, conseguem reconquistar Constantinopla, seu eixo ou centro histórico, mas ficaram irremediavelmente esgotadas.

Segue a conquista turca (1453), e o mundo helênico cai durante quatro séculos num doloroso mutismo histórico, submetido à mais cruel barbárie. Vemos o desaparecimento político (e também cultural, em grande parte) dos gregos da cena histórica. A ortodoxia eclesial é salvaguardada, apesar das perseguições religiosas desencadeadas periodicamente pelos turcos e as tentativas de islamização forçada das populações cristãs, que revivem cenas de martírio semelhantes às dos primeiros cristãos. A ortodoxia identifica-se organicamente com a consciência e a identidade culturais do povo, ela se torna a maneira de viver do povo, ela diferencia de maneira vital o grego, não somente do turco, que vive uma religião diferente, mas também do ocidental heterodoxo.

Durante estes quatro séculos de martírio, a única relação histórica entre o Ocidente europeu e o Oriente helênico foi a das vagas sucessivas de missionários que trabalham de maneira infatigável par a “conversão” dos ortodoxos aos dogmas católicos ou protestantes. As evoluções de importância histórica universal que, neste período, acontecem no Ocidente, e que mudam literalmente o curso da História humana, são percebidas pelos gregos submetidos somente como um eco distante de façanhas maravilhosas. Por isso, não é possível apreciar e julgar os fatos com os critérios de vida e de verdade próprios da Tradição eclesial ortodoxa.

Não seria exagerado dizer que no Ocidente se desenvolveu uma certa cosmogonia, durante os quatrocentos anos de silêncio histórico do Helenismo. Lembremos, de maneira sucinta, o desenvolvimento das ciências naturais e da técnica, as descobertas de novas regiões e a confluência das riquezas na Europa, as ideias filosóficas radicais e o liberalismo político e social que as acompanha, a expansão da classe burguesa e as revoluções para reivindicar seus direitos, a nova concepção do Estado e do poder, a aparição do capitalismo e a propagação surpreendente do uso das máquinas na produção.

Uma característica essencial destas transformações históricas é o esforço feito pelo homem europeu para reinar sobre a realidade natural e histórica pelas suas próprias forças e faculdades, sem recorrer, para explicar os seus atos, a argumentos metafísicos ou justificações religiosas. O desengajamento progressivo a respeito da autoridade da Igreja romana e, finalmente, a separação que opõe os elementos religiosos e seculares da vida, tomam-se os sinais fundamentais característicos da época dos “tempos modernos” na Europa. A tradição agostiniana e o escolasticismo ensinaram a autonomia da capacidade intelectual do indivíduo, que o homem europeu reivindicou então plenamente, rejeitando até a referência ou a dependência metafísica. Fundamentada em bases religiosas muito claras e admitidas por todos, a civilização euro-ocidental aparece, desde o “Renascimento” dos séculos XIV e XV, se não radicalmente antirreligiosa, pelo menos certamente portadora, como traços característicos, de oposições polarizadoras, tais como transcendente e secular, fé e conhecimento, sagrado e “profano”, autoridade e pesquisa, revelação e experiência, submissão e contestação.

10. 7 Ortodoxia eclesial e civilização ocidental hoje

Um panorama histórico das condições em que aconteceu a ocidentalização dos países do Oriente ortodoxo, começando pela alteração da consciência cultural helênica depois da fundação do Estado moderno na Grécia, na sequência da fundação, no século XVIII, da Rússia de Pedro o Grande, permitiria indicar os problemas maiores referentes à interpretação, à presença e o testemunho da ortodoxia eclesial nos nossos dias. A oposição entre a Ortodoxia e o Ocidente deixou de ser facilmente perceptível, não sendo mais evidente. O Ocidente, que não tem mais fronteiras geográficas, está em toda parte, e representa na história a primeira civilização de dimensões realmente planetárias. A palavra civilização significa: pressupostos teóricos concretos de ordem ideológica e dogmática, que se traduzem conscientemente ou não, numa atitude de vida, numa maneira de vida cotidiana.

Hoje em dia, mesmo nos países chamados ortodoxos, a civilização é “ocidental”, a maneira da vida cotidiana enraíza a sua elaboração histórica na metafísica ocidental, remontando a Tomás de Aquino e Agostinho. Assim, a ortodoxia parece se limitar apenas a convicções individuais, deixando de fora a praxe da vida, a encarnação histórica da verdade. A ortodoxia torna-se um ensino abstrato, um dogma desencarnado, uma conservação de formas cultuais e exteriores.

Mas tudo isto são dados “objetivos” que precisam o problema; mas a realidade da vida não se esgota, certamente, na fenomenologia dos sintomas. Certamente, a dinâmica da verdade eclesial pode ficar na espera, e a ortodoxia permanecer silenciosa durante muitas décadas, por séculos até. Mas a ausência de uma dinâmica histórica concreta, a ausência de um testemunho atual da ortodoxia encarnado numa realização cultural concreta, não significa a morte da semente da verdade eclesial, nem o esgotamento da seiva que dela jorra. Em algum lugar a vida se encontra em gestação secreta, e um dia virá em que a semente enterrada deslocará a rocha que a abafa.

Até esse momento, para a geração atual dos ortodoxos há uma questão central à qual o estudo e a vida devem se dedicar: o confronto entre a ortodoxia eclesial e a civilização ocidental, a análise e a exploração das muitas prolongações deste confronto. Finalmente e sobretudo, é preciso viver este confronto com um espírito humilde e crucificado, e buscar uma solução encarnada nas manifestações hipostáticas vivas que são as pessoas dos santos. Não esqueçamos que o critério da ortodoxia é a catolicidade eclesial, e que a medida da catolicidade é a realização dos dons da vida na pessoa dos santos.

O confronto entre a Ortodoxia e o Ocidente não consiste em antagonismos teórico e abstrato, nem uma contestação histórica entre instituições; por isso, não pode ser evitado simplesmente com esforços fraternos de reconciliação empreendidos pelas Igrejas cristãs divididas. O que primariamente interessa não são as diferenças teológicas como tais, mas suas consequências diretas sobre a vida e a ação histórica. A consciência ortodoxa deve, pelo menos, responder ao desafio do ateísmo e, niilismo ocidentais, que literalmente varreram - e não de maneira fortuita - a cristandade de que o Ocidente tinha feito uma “religião”. A crítica da religião feita pelos séculos das Luzes e o liberalismo, o marxismo, o freudismo, o existencialismo ateu, o agnosticismo científico, que aparece de uma precisão implacável, parece justificada historicamente. A questão, então, é a seguinte: Que respostas vivas e que dinâmica de vida a consciência eclesial ortodoxa pode opor a esta crítica?

O confronto parece terrivelmente desigual, pois se opõem, de um lado as estruturas rígidas de uma civilização que se impõe de maneira todo-poderosa sobre a organização da vida humana; e por outro, a consciência ortodoxa que se conserva apenas na experiência litúrgica e no discurso teológico. Trata-se realmente do “grão de trigo” enterrado que se decompõe na terra: é isso a Ortodoxia, nos nossos dias. Esta morte, todavia, constitui a esperança e a fé dos Ortodoxos. O problema do testemunho ortodoxo hoje é realizar a distinção entre o sepultamento vivificante do “grão de trigo” e a corrupção sem esperança e sem saída que corrói abertamente as estruturas da civilização da heresia.

Hoje em dia, o impasse da civilização ocidental não é mais teórico; ele se manifesta através da angústia e o absurdo da maneira de vida cotidiana. Esta civilização do “equilíbrio do terror”, dos programas racionais encarregados de organizar o “bem-estar geral”, dos resíduos tóxicos, do entorpecimento consequente ao espírito de consumo, e da submissão da existência humana às ideologias totalitárias, chegou a ameaçar a vida em escala universal.

Todavia, no seio desta morte, a Igreja continua esperando a ressurreição dos mortos. Enquanto a tradição litúrgica ortodoxa for preservada e “funcione”, mesmo escondida em paróquias ou dioceses desconhecidas, e enquanto o testemunho teológico for articulado em torno da maneira de vida preservada pelo culto, haverá uma cultura situada nos antípodas da civilização ocidental que sobrevive secretamente, e uma palavra universal, salvífica para o homem, se prepara com força. 




Notas

[1] Cf. J. ZIZIOULAS, L'Unité de l 'Église dans la divine eucharistie et l 'épiscopat durant les trois premiers siècles, Atenas 1965 (em grego).

[2] HERÁCLITO, Fragments, ed. Diels-Kranz I, 29-30.148.

[3] Cf. anteriormente, p. 54ss. Pode-se encontrar um desenvolvimento maior na nossa obra: Philosophie sans rupture, trad. André Borrély, Labor et Fides, Geneve 1986.

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