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George Florovsky:

Excertos de cristianismo e cultura

Trad.: Pe. Pedro Oliveira Junior

Fé e cultura

stamos vivendo num mundo mudado e em mutação. Isso não pode ser negado nem por aqueles do nosso meio que não desejam ou estão despreparados para mudarem eles próprios e que querem permanecer nesse período que está passando rapidamente. Mas ninguém pode fugir do desconforto de pertencer a um mundo em transição. se nós aceitamos a classificação tradicional de períodos históricos em "orgânicos" e "críticos," não há dúvida que nossa época presente é uma época crítica, uma época de crise, uma época de tensões não resolvidas. Ouve-se, com muita freqüência, nos nossos dias, sobre "o Fim do Nosso Tempo," sobre "o Declínio do Ocidente," sobre "Civilização em Julgamento"e outras expressões desse tipo. É mesmo sugerido às vezes que provavelmente nós estamos passando agora pela "Grande Divisão," pela maior mudança na história da civilização, que é muito maior e mais radical que a modificação da Antigüidade para a Idade Média, ou da Idade Média para os Tempos Modernos. Se o que foi afirmado por Hengel, que "a História é Julgamento" (Die Weltgeschichte ist Weltgerichte), é verdadeiro, então há algumas épocas fatais, quando a história não somente julga, mas também dá a si própria uma sentença de condenação. Nós somos persistentemente lembrados, por especialistas e profetas, que as civilizações crescem e decaem, e não há qualquer razão especial para esperar que nossa civilização venha a escapar desse destino comum. se há qualquer futuro histórico, pode muito bem acontecer que este futuro esteja reservado para outra civilização, e provavelmente para uma que será muito diferente da nossa.

É muito comum em nossos dias, e na verdade está muito na moda, dizer-se que nós já estamos vivendo num "mundo pós-Cristão" — seja qual for o significado dessa pretensiosa frase — num mundo que subconscientemente ou deliberadamente, "retirou-se" ou apartou-se do Cristianismo. "Nós vivemos nas ruínas de civilizações, esperanças, sistemas e almas."Não só nós nos encontramos em encruzilhadas, nas quais o caminho certo parece incerto, como, além disso, muitos de nós questionamos se existe um caminho certo, e se há qualquer perspectiva de encontrá-lo. Não se encontraria nossa civilização num impasse para o qual não há saída, a não ser à custa de uma explosão? Agora, qual a razão do problema? Qual é a causa primária ou definitiva desse colapso iminente e aterrador? É somente um "colapso nervoso" como às vezes é sugerido, ou é então uma "doença mortal," uma doença do espírito, a perda da fé? Não há consenso neste ponto. No entanto, parece haver um considerável consenso de que nosso mundo cultural foi de algum modo desorientado e descentralizado espiritualmente e desorientado e desorganizado intelectualmente, de tal forma que nenhum princípio todo-abrangente que fosse capaz de manter todos os elementos mutáveis juntos,foi deixado. Como Cristãos nós podemos ser mais enfáticos e precisos. Nós afirmaríamos que é precisamente a moderna retirada do Cristianismo, seja qual for a data exata do seu início histórico, que está no âmago de nossa presente crise. Nossa época é, antes de tudo, uma época de descrença, e por essa razão uma época de incerteza, confusão e desespero. Há, em nosso tempo, tantos e tantos que não tem esperança, precisamente porque perderam toda a fé.

Nós não deveríamos, no entanto, fazer essas afirmações muito facilmente, e deveríamos ter cautela em pelo menos dois pontos. Primeiro, as causas e motivos dessa óbvia "retirada" foram complexas e variadas, e a culpa não pode ser atribuída somente àqueles que se retiraram. Em humildade Cristã, os fiéis não deveriam se exonerar incondicionalmente, e não se dispensar muito sumariamente, deixando toda responsabilidade pelas falhas com os outros. Se nossa cultura, que nós como Cristãos, costumamos olhar com muita complacência, se desintegra e cai aos pedaços, ela só mostra que a semente da corrupção já estava ali. Segundo, nós não deveríamos olhar todos os fiéis como construtivos em si, e nem deveríamos receber todas as crenças como antídoto contra dúvida e ruptura. Pode ser perfeitamente correto, como os sociólogos afirmam, que as culturas se desintegram quando não existe incentivo inspirador, nem convicção motivadora. Mas, é o conteúdo da fé que é decisivo, ao menos do ponto-de-vista Cristão. O perigo maior em nossos dias é que há excessivas "crenças" conflitantes. A maior tensão não está tanto entre "crença" e "não crença," mas está precisamente entre crenças rivais. Excessivos "Evangelhos estranhos" são pregados, e cada um deles exige total obediência e fiel submissão; até mesmo a ciência, às vezes posa de religião. Pode ser certo que a crise moderna possa ser rastreada até a perda de convicções. Seria desastroso, no entanto, se o povo se reunisse em torno de uma falsa bandeira, e hipotecasse lealdade a uma fé errada. A raiz real da tragédia moderna não está só no fato de que o povo perdeu convicções, mas sim no fato que eles desertaram Cristo.

Agora, quando nós falamos de "crise de cultura," o que de fato isso significa? A palavra "cultura" é usada em vários significados diferentes e não há definição comumente aceita. De um lado, "cultura" é uma específica atitude ou orientação de indivíduos ou de grupos humanos, pela qual nós distinguimos a sociedade "civilizada" da "primitiva." É ao mesmo tempo um sistema de objetivos e interesses, e um sistema de hábitos. De outro lado, "cultura" é um sistema de valores, produzidos e acumulados no processo criativo da história, e tendente a obter uma existência semi-independente, isto é, independente daquele esforço criativo que originou ou descobriu esses valores. Os valores são variados e diversos e provavelmente nunca são integrados completamente num todo coerente-maneiras polidas e que tais, instituições políticas e sociais, industria, adoção de medidas sanitárias, ética, arte e ciência e assim por diante. Portanto, quando falamos de crise de cultura, usualmente estamos mencionando uma desintegração em um, ou nos dois sistemas diferentes e não obrigatoriamente relacionados. Pode acontecer que alguns dos valores aceitos ou considerados, sejam desacreditados e comprometidos, isto é, deixem de funcionar e não mais atraiam os homens. Ou ainda, acontece às vezes, que o próprio ‘homem civilizado" degenera ou até desaparece de todo, hábitos culturais se tornam instáveis, ou os homens perdem interesse por esses hábitos, ou se cansem deles. então uma incitação pelo primitivismo pode emergir, e só talvez dentro do arcabouço de uma civilização duradoura. Uma civilização declina quando aquele impulso criativo que na origem a trouxe à existência, perde seu poder e espontaneidade. Então surge a questão, se "cultura" é relevante para o preenchimento da personalidade humana, ou não é nada mais do que um traje exterior que pode ser necessário em certas ocasiões, mas que não pertence organicamente à essência da natureza humana, e nós normalmente distinguimos entre "natureza" e "cultura," implicando que "cultura" é uma criação "artificial" do homem que ele superimpõe sobre a "natureza," apesar de parecer que de fato nós não conhecemos a natureza humana separada de cultura, ao menos de algum tipo de cultura.Pode ser afirmado que "cultura" na verdade não é "artificial," que é, isso sim, uma extensão da natureza humana, uma extensão pela qual a natureza humana adquire sua maturidade e completamento, de maneira que uma existência "sub-cultural" é de fato um modo de existência "sub-humano." Não é verdade que um homem "civilizado" é mais humano que um homem "primitivo" ou "natural"? É precisamente nesse ponto que nossa maior dificuldade se coloca.

Pode ser perfeitamente verdadeiro, como eu pessoalmente acredito ser o caso, que nossa cultura ou civilização contemporânea esteja "em teste." Mas deveriam os Cristãos, como Cristãos, estarem preocupados com essa crise cultural? Se é verdade, como acabamos de admitir, que o colapso ou declínio da cultura está enraizado na perda da fé, numa "apostasia" ou "retirada," não deveriam os Cristãos estarem preocupados, principalmente ou mesmo exclusivamente, com a reconstrução da crença ou com a reconversão do mundo, e não com a salvação de uma civilização naufragante? Se nós estamos passando, de fato, em nossos dias, por um teste "apocalíptico," não deveríamos concentrar nossos esforços em Evangelização, na proclamação do Evangelho para uma geração esquecida disso, na pregação de penitência e conversão? A questão principal parece ser: se a crise pode ser resolvida se nós simplesmente opusermos a uma civilização gasta e rompida, uma nova civilização, ou se, para superar a crise, nós devemos ir muito além da civilização e alcançarmos as verdadeiras raízes da existência humana. Mas, se nós formos além da civilização, esse movimento não mostraria ser cultura desnecessária e supérflua? Estaria alguém necessitado ou interessado em cultura, quando esse alguém encontra o Deus Vivo, Aquele Que só Ele deve ser adorado e glorificado? Não é então, toda e qualquer "civilização" no fim, nada mais que um sutil e refinado tipo de idolatria, uma atenção e problemas com "muitas coisas," por coisas demais, enquanto existe só uma "boa parte," que nunca será tomada, mas que continuará "no além" pelos séculos dos séculos. De fato, não deveriam aqueles que encontraram a "pérola preciosa" ir em frente e vender todos os seus outros bens? E não seria precisamente uma infidelidade e deslealdade esconder e manter todas essas outras possessões? Não deveríamos simplesmente entregar todos "valores humanos" nas mãos de Deus?

Esse questionamento foi por séculos a maior tentação de muitas almas sinceras e devotas. Todas essas questões estão sendo levantadas e discutidas intensamente em nossos dias. Nós dizemos: tentação. Mas é justo usarmos essa palavra desqualificante? Não é, isso sim, um postulado do qual não se escapa, o da auto-renuncia integral, que é o primeiro pré-requisito e base da obediência Cristã? De fato, dúvidas sobre culturas e seus valores aparecem e emergem não só nos dias de grandes testes históricos e crises. Elas aparecem, com freqüência, também em períodos de paz e prosperidade, quando alguém se acha no perigo de vir a ser escravizado e seduzido pelas conquistas humanas, pelas glórias e triunfos da civilização. Elas aparecem com freqüência no processo íntimo e pessoal de procura por Deus. A auto-renuncia radical pode conduzir pessoas devotas aos desertos, às cavernas da terra, fora do "mundo civilizado," e cultura pareceria a elas como vaidade, vaidade das vaidades, mesmo que se alegue que essa cultura se cristianizou, pelo menos na forma, senão em essência. Seria correto deter esses irmãos devotos, em sua resoluta busca da perfeição, e retê-los no mundo, compeli-los a participar na construção ou reforma daquilo que para eles nada mais é do que uma Torre de Babel? Estamos preparados para desautorizar Santo Antônio do Egito ou São Francisco de Assis e convencê-los a permanecer no mundo? Não está Deus radicalmente acima e além de toda cultura? "Cultura," além disso, possui qualquer valor intrínseco? É ela serviço ou jogo, obediência ou distração, vaidade, luxuria e orgulho, ou seja, finalmente, uma armadilha para as almas? Parece óbvio, que cultura não é, e por sua natureza não pode ser, um fim último ou um valor último, e não deveria ser olhada como um último objetivo ou destino do homem, e provavelmente nem mesmo um componente indispensável da verdadeira humanidade. Um "primitivo" pode ser salvo, não menos que um "civilizado." Como coloca Santo Ambrósio, Deus não escolheu salvar Seu povo por argumentos inteligentes. Além disso, cultura não é um bem incondicional. É, isso sim, uma esfera de inevitáveis ambigüidades e envolvimentos. Ela tende a degenerar em "civilização," se nós aceitarmos a distinção entre esses dois termos feita por Oswald Spengler — e o homem pode ser desesperadamente escravizado por ela, como o homem moderno, supostamente está. "Cultura é uma conquista do homem, é uma criação deliberada do próprio homem, mas uma "civilização" realizada, é com muita freqüência, inimiga da criatividade humana. Muitos em nossos dias, e na verdade em todos os tempos, estão dolorosamente cientes dessa tirania da "rotina cultural," do cativeiro da civilização. Pode ser argumentado, como já foi mais de uma vez, que na civilização o homem está, como esteve, "estranho" a si próprio, estranho e desligado das verdadeiras raízes de sua existência, do seu próprio "eu," ou da natureza, ou de Deus. Essa alienação do homem pode ser descrita e definida por numerosas maneiras e meios, tanto de modo religioso, quanto de modo não-religioso. Mas em todos os casos a "cultura" apareceria não só condicionando, mas como sendo ela própria uma condicionante.

Diferentes respostas foram dadas a essas questões no curso da história Cristã, e o problema ainda permanece sem solução. Foi recentemente sugerido, que toda a questão "Cristo e Cultura" é um "problema persistente," que possivelmente não admite nenhum tipo de solução final. É como dizer que diferentes respostas agradarão a diferentes tipos ou grupos de pessoas, tanto"crentes" quanto "não-crentes," e também diferentes respostas parecerão convencedoras em diferentes tempos. A variedade de respostas parece ter um duplo significado. De um lado, elas apontam para a variedade de situações humanas e históricas, nas quais diferentes soluções se imporiam naturalmente. Questões são colocadas e acessadas diferentemente num tempo de paz ou num tempo de crise. Mas de outro lado, desentendimento é o que se pode esperar na "Cristandade Dividida." Seria inútil ignorar a profundidade dessa divisão na Cristandade. O significado do Evangelho em si, é discordantemente entendido nas varias denominações. e no debate acerca de "Cristo e Cultura" nós encontramos a mesma tensão entre os "Católicos" e os "Evangélicos" que está no âmago do "Cisma Cristão." Se nós estamos real e sinceramente preocupados com a "Unidade Cristã," nós deveríamos olhar para uma solução definitiva para essa tensão básica. De fato, nossa atitude para com a "cultura" não é uma opção prática, mas uma opção teológica em primeiro e também último lugar .O recente crescimento do pessimismo histórico-cultural, que os alemães chamam de Kulturpessimismus e Geschichtspessimismus, não só reflete os envolvimentos factuais e confusões de nossa época, mas também revela uma peculiar mudança nas opiniões teológicas e filosóficas. Dúvidas sobre cultura têm um óbvio significado teológico e nascem nas profundezas da fé do homem. Não deveríamos dispensar qualquer desafio sincero muito facilmente e auto-complacentemente, sem simpatia e compreensão. No entanto, sem impor uma solução uniforme, para o que a nossa época não parece estar madura, não se pode evitar descartar certas soluções sugeridas como inadequadas, errôneas e enganadoras.

As modernas oposição e indiferença Cristãs à "cultura" tomam várias formas e moldes. Seria impossível tentar agora uma pesquisa abrangente de todas as formas reais de opinião. Devemos nos limitar a uma lista tentativa, daquelas que parecem ser as mais vocalizadas e relevantes em nossa situação atual. Há uma variedade de motivos e uma variedade de conclusões.Dois motivos especiais parecem concorrer para um desprêzo pelo mundo por muitos Cristãos, em todas as denominações. De um lado, o mundo está passando, e a própria história parece tão insignificante "na perspectiva da eternidade," ou quando relacionada ao destino definitivo do homem. Todos os valores históricos são perecíveis, e também relativos e incertos. A cultura também é perecível, e de nenhum significado na perspectiva do fim iminente. De outro lado, o mundo todo parece ser tão insignificante em comparação com a insondável glória de Deus, como foi revelado no mistério de nossa Redenção. Em certas épocas, e em certas situações históricas, o mistério da Redenção parece obscurecer o mistério da Criação, e a Redenção é encarada mais como uma dispensa do mundo decaído, do que sua cura e recuperação. A oposição radical entre Cristianismo e Cultura, como é apresentada por certos pensadores Cristãos, é mais inspirada por certas pressuposições teológicas e filosóficas, do que por uma análise da cultura em si. Há um crescente sentimento escatológico hoje em dia, ao menos em certos setores. Há também uma crescente desvalorização do homem no pensamento contemporâneo filosófico e teológico, parte em reação ao excesso de autoconfiança da época passada. Há uma redescoberta da "nulidade" humana, da precariedade e insegurança essenciais de sua existência, tanto física quanto espiritual. O mundo parece ser inimigo e vazio, e o homem sente-se perdido no fluxo de acidentes e falhas. Se ainda há qualquer esperança de "salvação," ela é tomada mais no sentido de "escape" e "resistência" do que no sentido de "recuperação" ou "reparação." O que se pode esperar da história?

Podemos considerar vários tipos dessa atitude "pessimista." Os títulos que eu vou usar não são mais do que tentativos e provisórios.

Antes de todos, devemos enfatizar a persistência do motivo Pietista ou Revivalista na moderna desvalorização da cultura. Os homens acreditam que eles encontraram seu Senhor e Redentor em sua experiência pessoal e privada, e que eles foram salvos pela misericórdia Dele e pela resposta deles em fé e obediência. Nada mais é, portanto necessário.

A vida do mundo, e no mundo, parece a eles ser nada além de um emaranhado pecaminoso, fora do qual eles estão satisfeitos e orgulhosos por terem sido liberados. A única coisa que eles têm a dizer a respeito desse mundo, é expor sua vaidade e perversão e profetizar sentença e condenação, e a futura vinda da ira e julgamento de Deus.Pessoas desse tipo podem ser de diferentes temperamentos, às vezes selvagens e agressivos, às vezes suaves e sentimentais. Em todos os casos, no entanto, eles não conseguem ver nenhum significado positivo no contínuo processo da cultura, e são indiferentes a todos os valores da civilização, especialmente para com aqueles que eles não podem justificar do ponto-de-vista utilitário. Pessoas desse tipo pregariam a virtude da simplicidade em oposição à complexidade do envolvimento cultural. Eles podem vir a escolher retirar-se para a privacidade de uma existência solitária, ou de uma estóica "indiferença," ou eles podem preferir um tipo de vida comunitária, em companhia próxima daqueles que compreenderam a futilidade e falta de propósito de toda canseira e esforço histórico. Pode-se descrever essa atitude como sectária, e de fato, há uma deliberada tentativa de fugir de qualquer participação na história comum. Mas essa aproximação "sectária" pode ser encontrada entre pessoas de varias tradições culturais e religiosas. Há muitos que querem "retirar-se do mundo," ao menos psicologicamente, mais para a segurança do que para o "combate não visto."Há, nessa atitude, uma mistura paradoxal de penitência e auto-satisfação, de humildade e orgulho. Há também nessa atitude, um deliberado descuido com, ou indiferença para com,doutrina, e uma inabilidade para pensar consistentemente nas implicações doutrinais dessa atitude "isolacionista." De fato, isso é uma redução radical do Cristianismo, ao menos uma redução subjetiva, no qual ele se torna não mais do que uma religião privada, de indivíduos. O único problema com que essas pessoas se preocupam é o problema da "salvação" individual.

Em segundo lugar, há o tipo "Puritano" de oposição. Há uma "redução similar da crença, usualmente admitida abertamente. Na prática, é um tipo ativo, sem nenhum desejo de fugir da história. Somente que a história é aceita mais como um "serviço" ou "obediência," e não como uma oportunidade criativa Há a mesma concentração no problema da "salvação."

A controvérsia básica é que o homem, esse miserável pecador, pode ser perdoado, se e quando ele aceita o perdão que é oferecido a ele por Cristo e em Cristo, mas mesmo nesse caso ele permanece precisamente o que ele é, uma criatura frágil e inaproveitável, e não é essencialmente mudado ou renovado. Mesmo como uma pessoa perdoada, ele continua como uma criatura perdida, e sua vida não pode ter nenhum valor construtivo. Isso não deve necessariamente conduzir a uma retirada da cultura, ou à negação da história, mas isso faz da história uma espécie de servidão, que deve ser levada adiante e suportada, e não se deve fugir dela, mas suportá-la como um treinamento de caráter e teste de paciência, mais do que um reino de criatividade. Nada é para ser conseguido na história. Mas o homem deveria usar toda oportunidade para provar sua lealdade e obediência e reforçar o caráter por esse serviço de fidelidade, por esse cativeiro de dever. Há uma forte ênfase "utilitária" nessa atitude, se ela é uma "utilidade transcendente," um pronunciamento que diz respeito "à salvação." Tudo que não servir diretamente a esse propósito deve ser descartado, e nenhum espaço é permitido para qualquer "criatividade desinteressada" como, por exemplo, arte ou "belas-letras."

Em terceiro lugar, há o tipo Existencialista de oposição. Seu motivo básico está no protesto contra a escravização do homem na civilização, que só esconde dele o último predicado de sua existência, e obscurece a desesperança do seu emaranhado. Não seria justo negar a relativa verdade do movimento Existencialista contemporâneo e a verdade da reação; e provavelmente, o homem moderno de cultura precisava desse cortante e impiedoso alerta. Em todas as suas formas, religiosas e não religiosas, o Existencialismo expõe a nulidade do homem, do homem real, como ele é e conhece a si próprio. Para aqueles que entre os Existencialistas falharam em encontrar Deus, ou são tolerantes com a negativa ateísta, essa "nulidade" é justamente a última verdade sobre o homem e seu destino. Mas o homem deveria encontrar essa verdade fora de si mesmo. Mas muitos Existencialistas encontraram Deus, ou como eles colocam a respeito de si próprios, foram encontrados por Ele, desafiados por Ele, em Sua indivisa ira e misericórdia. Mas paradoxo suficiente, eles consideram que o homem ainda é "nada," apesar do amor redentor e consideração do Criador por Suas criaturas perdidas e desviadas. Na concepção deles, a "criação" do homem condena-o a ser inextricavelmente nada mais do que "nada," ao menos aos seus próprios olhos, apesar do misterioso fato de que para Deus Suas criaturas são obviamente muito mais do que "nada," já que o amor redentor de Deus moveu-O pelo homem, ao tremendo Sacrifício da Cruz. O Existencialismo parece estar certo em sua crítica à complacência humana, e é até mesmo útil na detecção da pequenez humana. Mas é sempre cego em relação à complexidade da Divina Sabedoria. Um Existencialista é sempre um ser sozinho e solitário, inextricavelmente envolvido no escrutínio de seu predicado. Seus termos de referência são sempre o TODO de Deus, e o NADA do homem. E mesmo no caso em que sua análise começa com uma situação concreta, mesmo que seja pessoal, ele continua, de alguma maneira, in abstracto: em última instância ele não falará de uma pessoa viva,mas sim do homem como homem, porque no fim, todos os homens estão sob a mesma e universal detecção de sua completa irrelevância. Seja qual for a explicação psicológica e histórica para o crescimento recente do Existencialismo, no todo ela nada mais é do que um sintoma de desintegração e desespero.

E finalmente, não deveríamos ignorar a resistência ou indiferença do "Homem Simples." Ele pode viver mui quietamente no mundo da cultura, e até mesmo gostar dele, mas ele se pergunta o que a cultura pode "acrescentar," exceto pelo lado da decoração, ou como um tributo de reverência e gratidão, especialmente na forma de arte.Mas como uma regra, o "homem simples" suspeita com cautela do uso da razão em assuntos de fé e coerentemente dispensará o entendimento das "crenças."Para ele, que valor religioso pode haver num estudo desinteressado de qualquer assunto, que não tenha imediata aplicação prática, e não possa ser usado na distribuição de caridade? O "homem simples" não tem dúvidas sobre o valor ou utilidade da cultura na economia da vida temporal, mas ele hesitará em reconhecer sua relevância na dimensão espiritual, a menos que ela possa afetar ou exibir a integridade moral do homem. Ele não encontrará justificativa religiosa para a necessidade do homem conhecer e criar. Não é, no fim, cultura nada mais que vaidade, uma frágil e perecível coisa, na verdade? E não são as raízes mais profundas do orgulho e arrogância humana precisamente uma decorrência das demandas e ambição da razão? O "homem simples" usualmente prefere "simplicidade" na religião, e não tem interesse naquilo que ele rotula de "especulações teológicas," incluindo aí, muitas vezes, quase todas as doutrinas e dogmas da Igreja. O que está envolvido nessa atitude, é mais uma vez um conceito unilateral(e defeituoso) do homem e da relevância da vida real do homem na história para seu "destino eterno," isto é, o propósito definitivo de Deus. Há uma tendência a acentuar o "caráter de outro mundo" da "Vida Eterna," a tal ponto, que a personalidade humana corre o rico de ser rachada em dois. É a história, em sua inteireza, somente um campo de treinamento para almas e caráteres, ou é alguma coisa mais comprometida no plano de Deus? É o "último julgamento" somente um teste de lealdade, ou também é uma "recapitulação" da Criação?

É aqui que nós estamos tocando na causa mais profunda da constante confusão na discussão sobre "Fé e Cultura." Os mais profundos assuntos teológicos estão envolvidos nessa discussão, e nenhuma solução poderá ser encontrada algum dia, a menos que o caráter teológico dessa discussão seja claramente aceito e entendido. Nós precisamos de uma teologia da cultura mesmo para nossas decisões "práticas." Nenhuma decisão real pode ser tomada no escuro. O dogma da Criação, com tudo em que ele implica, foi perigosamente obscurecido na consciência dos Cristãos modernos, e o concito de Providência, isto é, da perene preocupação do Criador com o destino de sua Criação, foi, na verdade, reduzido gritantemente a algo sentimental e subjetivo. Coerentemente, "História" foi concebida como um enigmático intervalo entre os Poderosos Atos de Deus, para os quais foi difícil atribuir qualquer substância própria. Isso foi de novo ligado com uma concepção inadequada do Homem. A ênfase foi mudada da realização do plano de Deus para o homem, para a liberação do Homem das conseqüências de sua falha "original." E coerentemente, a doutrina toda das Ultimas Coisas foi perigosamente reduzida, e começou a ser tratada nas categorias de justiça forense ou de amor sentimental. O "Homem Moderno" falha em apreciar e acessar a convicção dos primeiros Cristãos, derivada das Escrituras, de que o homem foi criado para um propósito criativo, e era para agir no mundo como rei, sacerdote e profeta dele. A queda ou falha do homem não aboliu esse propósito ou plano, e o homem foi redimido para ser reinstalado no seu nível original e pra reassumir seu papel e função na Criação. É somente fazendo isso, que ele pode tornar-se naquilo que ele foi projetado para ser, não só no sentido de que ele deveria mostrar obediência, mas também para cumprir a tarefa que lhe foi apontada por Deus, em Seu plano criativo, precisamente como a tarefa do homem. Assim como a História não passa de uma pobre antecipação do "tempo que virá," ela é também, no entanto, uma antecipação real, e o processo cultural na história está relacionado com a consumação final, de uma maneira e em um sentido que nós não podemos decifrar adequadamente agora. Devemos ser cautelosos também em não minimizar a vocação criativa do homem. O destino da cultura humana não é irrelevante para o destino último do homem.

Tudo isso pode ser visto como sendo uma ousada especulação, muita além da nossa autoridade e competência. Mas o fato permanece: Cristãos como Cristãos estiveram construindo cultura por séculos,e muitos deles não só com o sentido de vocação ou obrigação de dever, mas com a firme convicção de que isso era a vontade de Deus. Um breve retrospecto do esforço Cristão na cultura pode nos ajudar a ver o problema de uma maneira mais concreta, em sua total complexidade, mas também em toda sua inevitabilidade. Como uma questão de fato, o Cristianismo entrou no mundo precisamente num dos períodos mais críticos da história, no tempo de uma momentânea crise de cultura. E a crise foi finalmente resolvida pela criação da Cultura Cristã, instável e ambígua como essa cultura provou ser, por sua vez, no curso de sua realização.

De fato, a questão da relação entre o Cristianismo e a Cultura nunca é discutida em abstrato, dessa forma generalizada, ou em todo caso, ela não deveria ser discutida assim. A cultura sobre a qual se fala, é sempre uma cultura particular. O conceito de "cultura," com o qual se opera, é sempre condicionado a uma situação, isto é, derivado da experiência real que se tem, em uma cultura particular própria, da qual pode-se gostar ou detestar, ou então é um conceito imaginário, "outra cultura," um ideal, a respeito do qual se pode sonhar e especular. Mesmo quando a questão é posta em termos gerais, impressões e desejos concretos podem ser sempre detectados. Quando "Cultura" é resistida ou negada por Cristãos, é sempre uma definida formação histórica que é tomada para ser representativa da idéia Em nossos dias seria a civilização mecanizada ou "Capitalista," interiormente secularizada e, portanto estranha a qualquer religião. Nos tempos antigos era a civilização pagã Greco-Romana. O ponto-de-partida em ambos os casos, é a imediata impressão de choque e conflito, e da incompatibilidade prática de estruturas divergentes, que divergem basicamente em espírito e inspiração.

Os primeiros Cristãos estiveram enfrentando uma civilização particular, a do mundo Romano e Helenista. Foi sobre essa civilização que ele falaram, foi contra esse concreto "sistema de valores" que eles foram críticos e estiveram inquietos. Essa civilização, além disso, estava, ela própria, mudando e instável naquele tempo, e estava, de fato, envolvida numa desesperada luta e crise. A situação estava complexa e confusa. Os historiadores modernos não podem escapar da antinomia em sua interpretação dessa primeira época Cristã, e não se pode esperar mais coerência da interpretação dada pelos autores da época. É óbvio que essa civilização Helenista estava, num certo sentido, madura ou preparada para a "conversão," e pode até mesmo, de novo num certo sentido, ser olhada como um tipo de Praeparatio Evangelica, e os então contemporâneos estavam conscientes dessa situação. Já São Paulo sugeriu isso, e os Apologistas do segundo século, e os primeiros Alexandrinos não hesitaram em se referir a Sócrates e Heráclito, e a Platão, como precursores do Cristianismo. De outro lado, eles estavam cientes, não menos do que nós estamos hoje, de uma radical tensão entre aquela cultura e a mensagem deles, e os oponentes também estavam conscientes dessa tensão. O Mundo Antigo resistia à conversão, porque ela significava uma mudança radical e a quebra com suas tradições em muitos aspectos. Nós podemos ver agora a tensão entre o "Clássico" e o "Cristão." Os contemporâneos daquela época, não podiam, por certo, ver na mesma perspectiva que nós, porque eles não podiam antecipar o futuro. Se eles eram críticos de "cultura," eles significavam precisamente a cultura do seu próprio tempo, e essa cultura era estranha e inimiga do Evangelho. O que Tertuliano tinha a dizer sobre cultura, deveria, antes de mais nada, ser interpretado num quadro histórico concreto, e não deveria ser imediatamente transformado em pronunciamentos absolutos. Não estava ele certo em sua insistência na radical tensão e divergência entre Jerusalém e Atenas: quid Athenae Hierosolymis? "O que de fato Atenas tem a ver com Jerusalém? Que acôrdo existe entre a Academia e a Igreja?.. Nossa instrução vem do Átrio de Salomão, que ensinou que "O Senhor deve ser olhado com simplicidade de coração"...Não queremos disputa curiosa sobre possuir Jesus Cristo, nem inquisição por gostar do Evangelho. Com nossa fé, nós não queremos outra crença. Pois essa é nossa fé palmar, e daí, não há nada no que queiramos crer além(de prescriptione,7). "O que há de comum entre o filósofo e o Cristão, o aluno de Hellas e o aluno do Céu, o trabalhador por reputação e salvação, o feitor de palavras e obras" (Apologeticus,46). No entanto, Tertuliano não conseguiu evitar "inquisição" e "disputa" e não hesitou em usar a sabedoria dos gregos na defesa da fé Cristã. Ele acusa a cultura de seu tempo, e uma específica filosofia de vida, que em sua verdadeira estrutura era oposta à fé. Ele estava temeroso de um fácil sincretismo e de contaminação, que era um real desafio e perigo no seu tempo, e ele não podia antecipar que uma transformação interior da mente helênica iría ocorrer nos séculos a vir, assim como ele não podia imaginar que Césares virariam Cristãos.

Não se deve esquecer que a atitude de Orígenes foi, na verdade, muito parecida, apesar dele ser olhado como um dos helenizadores do Cristianismo. Ele também estava consciente da tensão e suspeitava da vã especulação, na qual ele teve pouco interesse, e para ele as riquezas dos pagãos eram exatamente "as riquezas dos ímpios"(Salmo37,16). Santo Agostinho também tinha essa opinião. Não era a Ciência para ele, somente vã curiosidade que só distraia a mente de seu verdadeiro propósito, que não é numerar as estrelas, ou procurar as coisas escondidas da natureza, mas conhecer e amar a Deus? E também Santo Agostinho repudiava a Astrologia, que ninguém olharia como ciência em nossos dias, mas que nos dias dele era inseparável da verdadeira Astronomia. A precaução ou mesmo atitude negativa dos primeiros Cristãos para com filosofia, arte, fosse música ou pintura, e especialmente com a arte da retórica, só pode ser inteiramente compreendida no contexto histórico concreto. A estrutura toda da cultura existente era determinada e permeada por uma falsa e errada fé. Deve-se admitir que certas formas de cultura são incompatíveis com a atitude Cristã para com a vida, e por isso devem ser rejeitadas ou evitadas. Mas isso ainda não pré-julga a questão ulterior, se uma cultura Cristã é possível e desejável. Em nossos dias, deve-se, ou melhor, dever-se-ia, ser profundamente crítico de nossa civilização contemporânea, e até mesmo receber bem o seu colapso, mas isso não prova que civilização como tal deva ser condenada e amaldiçoada, e que os Cristãos deveriam retornar ao barbarismo ou primitivismo.

O fato é, que o Cristianismo aceitou o desafio das culturas Helênica e Romana e finalmente, uma civilização Cristã emergiu. É verdade que essa ascensão da Cultura Cristã tem sido extremamente censurada nos tempos modernos, como uma "aguda Helenização" do Cristianismo, na qual a pureza e simplicidade da fé Evangélica ou Escriturística alegadamente foi perdida. Muitos em nossos dias são bastante "iconoclásticos" com respeito à cultura em bloco, ou ao menos em relação a certos campos de cultura, tais como "filosofia"(igualada aos "sofistas") ou arte, repudiada como uma sutil idolatria, em nome da fé Cristã. Mas, de outro lado, nós devemos encarar acumulação. por muitos séculos de genuínos valores humanos no processo cultural, tomados e carregados no espírito de obediência Cristã e dedicação à verdade de Deus.

O que é importante nesse caso é que a Cultura Antiga provou ser plástica suficiente para admitir uma "transfiguração" interior. Ou em outras palavras, os Cristãos provaram que era possível reorientar o processo cultural, sem cair num estado pré-cultural, remodelando a fábrica cultural num novo estilo. O mesmo processo que tem sido variadamente descrito como uma "Helenização do Cristianismo" pode ao invés ser interpretado como uma "Cristianização do Helenismo." O helenismo foi dissecado pela Espada do Espírito, foi polarizado e dividido, e um "Helenismo Cristão" foi criado. Por certo o Helenismo era ambíguo, pois ele tinha dupla face. E certos renascimentos Helenistas na história do pensamento europeu foram bastante pagãos, chamando por cautela e crítica É suficiente mencionar as ambigüidades da Renascença, e nos últimos tempos Goethe e Nietzsche. Mas não seria justo ignorar a existência de outro Helenismo, já iniciado na Idade dos Padres, tanto gregos quanto latinos, e que continuou criativamente pela Idade Média e pelos Tempos Modernos. O que é realmente decisivo nessa conexão é que o "Helenismo" foi realmente mudado. Pode-se ser muito rápido em se descobrir "adições helênicas" na fábrica da vida Cristã, e ao mesmo tempo muito negligente e esquecido dos fatos dessa "transfiguração."

Um admirável exemplo é suficiente pata nossa presente proposta. Foi recentemente trazido à lembrança, o fato de que o Cristianismo conseguiu uma mudança radical na interpretação filosófica do tempo. Para os antigos filósofos gregos, o tempo era "uma imagem móvel da eternidade," isto, é um movimento cíclico e recorrente, que tinha que voltar sobre si mesmo, sem nunca se mover "adiante," pois nenhum "movimento para frente" é possível no círculo. Era um tempo astronômico, determinado pela " revolução das esferas celestes"(lembremo-nos do famoso título do trabalho de Copérnico que estava ainda sobre a influência da Astronomia Antiga: De Revolutionibus Orbium Celestium), e a história humana estava coerentemente subordinada a esse princípio básico de rotação e interação. Nosso conceito moderno, de tempo linear, com um conceito de direção ou vetorialidade, com a possibilidade de progressão e conquista de coisas novas, foi derivado das Escrituras e do conceito de história das Escrituras, movendo-se da Criação à Consumação, em um movimento único, irreversível e irrepetível, guiado ou supervisionado pela constante Providência do Deus Vivo. O tempo circular dos gregos foi explodido, como jubilosamente Santo Agostinho exclamou. A história, pela primeira vez, podia ser concebida como um processo com significado e propósito, conduzindo a um objetivo, e não como uma rotação perene conduzindo a lugar nenhum. O próprio conceito de progresso foi elaborado pelos Cristãos. Isto quer dizer que o Cristianismo não foi passivo em seu intercurso com aquela cultura herdada que ele se esforçou em redimir, e de maneira muito ativa. Não é demais dizer que a mente humana foi renascida e refeita na escola da fé Cristã, sem nenhum repúdio às justas demandas e justos usos dessa cultura herdada. É verdade que esse processo de Cristianização da mente nunca foi completado, e tensão interna continua até mesmo dentro do "Universo de Discurso" Cristão. Nenhuma cultura pode em tempo algum, ser final e definitiva. Ela é mais do que um sistema, ela é um processo e ela só pode ser preservada e continuada por um constante esforço espiritual, e não somente por inércia ou herança. A verdadeira solução do perene da relação entre Cristianismo e Cultura está no esforço de converter "a mente natural" à fé correta, e não na negativa de tarefas culturais. preocupações culturais são parte integrante da real existência humana, e por essa razão não pode ser excluída do esforço histórico Cristão.

O Cristianismo entrou na cena histórica como uma Sociedade ou Comunidade, como uma nova ordem social, ou até mesmo, como uma nova dimensão social, ou seja, como a Igreja. Os primeiros Cristãos tinham um forte sentimento corporativo. Eles sentiam ser uma "raça escolhida," uma "nação santa," um "povo peculiar," ou seja, precisamente uma Nova Sociedade, uma "Nova Polis," uma Cidade de Deus. Mas, havia outra cidade em existência, de fato uma Cidade Universal e estritamente totalitária, o Império Romano, que se sentia ser simplesmente "o Império."Ele reclamava ser a Cidade, compreensiva e única. Ele reclamava todo e cada homem a seu serviço, como a Igreja quer o homem todo para o serviço de Deus. Nenhuma divisão de competência e autoridade poderia ser admitida, já que o Estado Romano não podia admitir autonomia da "esfera religiosa," e fidelidade religiosa era encarada como um aspecto do credo político e parte integral da obediência cívica. Por essa razão, um conflito era inevitável, um conflito das duas cidades. Os primeiros Cristãos sentiam-se,e de fato eram,extraterritoriais, fora da ordem social existente, simplesmente porque a Igreja era para eles uma ordem em si. Eles moravam em suas cidades como "residentes temporários" ou "estrangeiros" e para eles "qualquer terra estrangeira era pátria, e toda pátria era estrangeira," como colocou o autor da "Epístola a Diogneto" um notável documento do segundo século. De outro lado, não se retiravam da sociedade existente; eles podiam ser encontrados "em todos os lugares," como Tertuliano insistiu, em todos os caminhos da vida, em todos os grupos sociais, em todas as nações. Mas espiritualmente eles eram separados, segregados. Como Orígenes colocou, em todas as cidades os Cristãos tinham outro sistema de fidelidade, próprio, ou em tradução literal, "outro sistema de pátria"(Contra Celsus,VIII, 75). Os Cristãos permaneciam no mundo e estavam pre parados para executar suas obrigações diárias fielmente, mas não podiam prometer fidelidade total ao governo desse mundo, para acidade terrena, pois sua cidadania era de algum outro lugar, ou seja, "o céu."

No entanto, esse desprendimento do "mundo" não poderia ser mais do que provisório, pois o Cristianismo, por sua própria natureza, era uma religião missionária e pretendia fazer uma conversão universal. Essa sutil distinção "no mundo, mas não do mundo" não poderia colocar o problema básico, pois o próprio "mundo" tinha que ser redimido, e não poderia ser tolerado em seu estado não-reformado. O problema final era exatamente esse: poderiam as duas Sociedades coexistir,e em que termos? Poderia a fidelidade Cristã ser de alguma forma dividida ou duplicada, ou uma "dupla cidadania" ser aceita como um princípio normativo? Varias respostas foram dadas no curso da história. E o assunto ainda é quente e embaraçoso. Pode-se, imaginar se "segregação espiritual" não é de fato, a única resposta Cristã consistente, sendo qualquer outra solução um compromisso confuso. A Igreja está aqui, "nesse mundo," para a salvação dele. A Igreja tem, como teve, que exibir um novo nível de existência, um novo modo de vida, aquele do "mundo que virá." E por essa razão, a Igreja tem que se opor e renunciar a "esse mundo." Ela não pode, digamos assim, achar um lugar adequado para si nesse "velho mundo." Ela é compelida a estar "nesse mundo" em permanente oposição, mesmo que pretenda somente uma reforma ou renovação do mundo.

A situação em que a Igreja se encontra nesse mundo, é inextricavelmente antinômica. Ou a Igreja é para ser constituída como uma sociedade exclusiva, esforçando-se em satisfazer todos os requisitos dos fiéis, tanto "temporais" quanto "espirituais," dando nenhuma atenção à ordem existente e deixando nada para o mundo exterior — isso significaria uma inteira separação do mundo, uma definitiva fuga dele, e uma negação radical de qualquer autoridade externa. Ou a Igreja poderia tentar uma "Cristianização" inclusiva do mundo, subjugando a vida toda ao governo e autoridade Cristã, esforçando-se em reformar e reorganizar a vida secular em princípios Cristãos, para construía a Cidade Cristã. Na história da Igreja nós podemos rastrear as duas soluções: a fuga para o deserto e a construção do Império Cristão A primeira foi praticada não só no monasticismo de varias linhas, mas também por vários outros grupos e "seitas." A segunda foi a linha principal tomada por Cristãos, tanto no Ocidente quanto no Oriente, até o surgimento do secularismo militante na Europa e em outros lugares, mas mesmo no presente essa solução não perdeu apoio em muitos povos.

Historicamente falando, ambas as soluções provaram ser inadequadas e sem sucesso. De outro lado, tem-se que reconhecer a urgência do problema comum às duas soluções e a verdade de seu propósito comum. O Cristianismo não é uma religião individualista e não está preocupado somente com a salvação de indivíduos. Cristianismo é a Igreja, ou seja, a Comunidade conduzindo sua vida corporativa de acordo com seus princípios peculiares. A liderança espiritual da Igreja dificilmente pode ser reduzida a orientações ocasionais, a indivíduos ou grupos vivendo em condições gritantemente não congênitas com a Igreja, A legitimidade dessas condições deveria ser, antes de tudo, questionada. Nem a vida humana pode ser dividida em departamentos, alguns dos quais podem ter sido governados por alguns princípios independentes, ou seja, independentes da Igreja. Não se pode servir a dois mestres, e uma dupla fidelidade é uma solução pobre. O problema não é mais simples numa sociedade Cristã. Com Constantino, o Império como era capitulou, o próprio César foi convertido. O Império estava então oferecendo à Igreja não só paz mas também cooperação. Isso poderia ser interpretado como uma vitória da causa Cristã. Mas para muitos Cristãos daquela época essa nova fase de negócios foi uma surpresa, uma verdadeira explosão. Muitos líderes da Igreja estavam bastante relutantes em aceitar a oferta Imperial. Mas era difícil recusá-la. A Igreja inteira não poderia escapar para o deserto, nem poderia ela desertar o mundo. A nova Sociedade Cristã veio a existir, e era, ao mesmo tempo, "Igreja" e "Império," e sua ideologia era "teocrática."Essa idéia teocrática poderia desenvolver-se em duas versões, diferentes mas correlatas. A autoridade teocrática poderia ser exercida diretamente pela Igreja, isto é, através do Ministério hierárquico da Igreja. Ou o Estado poderia ser investido de autoridade teocrática e seus oficiais comissionados estabeleceriam e propagariam a ordem Cristã. Em ambos os casos a unidade da sociedade Cristã estaria fortemente enfatizada, e duas ordens eram vistas dentro de uma única estrutura: uma eclesiástica no estrito senso e uma temporal, isto é, a Igreja e o Estado, com a suposição básica de que o Império era também um dom Divino, em certo sentido coordenado com o sacerdócio, e subordinado à decisiva autoridade da fé. A teoria parece ser razoável e bem equilibrada, mas na prática conduziu a uma tensão e disputa de longo prazo dentro da estrutura teocrática e finalmente à sua ruptura. Falta consistência, tanto teórica quanto, prática à concepção moderna de duas esferas "separadas," a da Igreja e a do Estado.

De fato, estamos encarando ainda o mesmo dilema e a mesma antinomia. Ou os Cristãos devem ir para fora do mundo, no qual eles têm outro mestre além de Cristo (seja qual for o nome desse outro mestre: César, Mamon ou qualquer outro), e começar uma sociedade separada. Ou então eles tem que transformar o mundo exterior e reconstruí-lo de acordo com a lei dos Evangelhos. O que é importante, no entanto, é que mesmo aqueles que vão para fora não podem dispensar o problema principal: eles ainda têm que construir uma "sociedade" e assim sendo, não podem dispensar esse elemento básico da cultura social. "Anarquismo," de qualquer modo está excluído pelos Evangelhos. Nem o Monasticismo significa ou implica numa denúncia da cultura. Os Mosteiros foram, por um longo período, precisamente os mais poderosos centros de atividade cultural, tanto no Ocidente quanto no Oriente. O problema prático é então reduzir a questão a uma sólida e fiel orientação numa situação histórica concreta.

Os Cristãos não estão obrigados a negar a cultura como tal. Mas eles têm que ser críticos em qualquer situação cultural existente e o balizamento da crítica deve ser a medida de Cristo. Pois os Cristãos são também os Filhos da Eternidade, isto é,cidadãos futuros da Jerusalém Celeste. No entanto problemas e necessidades "desse tempo," em nenhum caso e em nenhum sentido, podem ser desconsiderados, porque os Cristãos são chamados para trabalhar e servir precisamente "nesse mundo" e "nesse tempo."Somente que todas essas necessidades, problemas e objetivos devem ser vistos com aquela nova perspectiva mais ampla, que foi aberta pela Revelação Cristã e iluminada por suas luzes.

Fonte:

Folheto Missionário número P 095k. Copyright © 2003 Holy Trinity Orthodox Mission
466 Foothill Blvd, Box 397, La Canada, Ca 91011

Redator: Bispo Alexandre Mileant

 

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